“Eu não entendia muito bem o que era ser drag, o que era ser trans, o que era travesti”

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  Letícia Dumont vai comemorar 20 anos de drag no dia da Parada Livre, 28 de junho.  André Ferreira (nome de batismo), 51 anos, não queria ser drag queen. Ele se montou por brincadeira com influência do seu ex namorado para ir na Parada Livre no ano 2000, e desde então nasceu a vontade de ser drag queen. A maior inspiração dela na época era a Dimmy Kieer  (Dicésar do BBB 10) na qual ela não acreditava que Dimmy era um homem. Inclusive, a Letícia não sabia muito a diferença de ser drag, travesti e trans.

 “Eu não entendia muito bem o que era ser drag, o que era ser trans, o que era travesti, eu não sabia. Eu pensava na minha cabeça, que naquela época tudo era travesti, e não era, são classes diferentes.”

  André queria ser  ator, e também se montar para animar as pessoas, e depois se desmontar. Já tem 20 anos que o André faz a drag Letícia Dumont com o principal objetivo de animar as pessoas, de fazer as pessoas felizes. Em meio a pandemia, a Aquenda Revista conversou com Letícia Dumont. Ela falou  o porque quis ser drag queen, diferenças das drag antigas para as drags atuais, obstáculos, preconceitos, carreira, momentos marcantes, planos pós pandemia, conselhos para quem quer ser drag e muito mais. Confira a entrevista completa:

Foto: arquivo pessoal

 

Aquenda Revista: Porque você quis ser drag queen?

Letícia Dumont: Eu não quis ser drag queen. No começo do ano 2000, eu  namorava um menino, ele gostava de se montar, eu não sabia e ele me convidou para ir em uma Parada Livre naquele ano. Eu resolvi me montar com ele, e foi aí onde tudo começou, por brincadeira. Porque naquela época, 20 anos atrás, ser drag queen estava no auge, era o começo, nós não tínhamos referência. Nós não tínhamos nada de internet, a gente contava com a cara e a coragem. Não tinha o Ru Paul, Instagram, não tinha Facebook, não tinha nada. Vinha uma drag de São Paulo, fazia o show, eu me inspirava muito na Dimmy Kieer que é o Dicésar do BBB, que eu conheci depois de um certo tempo. A Dimmy vinha pra cá, e era a minha inspiração naquela época. Eu não entendia muito bem o que era ser drag, o que era ser trans, o que era ser travesti, eu não sabia. Eu pensava na minha cabeça que naquela época tudo era travesti, e não era, são classes diferentes. Então eu queria ser  ator, eu queria me montar, ser aquele personagem para alegrar as pessoas,  e me desmontar, eu não queria ficar drag 24 horas. Eu queria ser um homem que se transformava em uma drag a noite para alegrar, era isso que eu queria. E nessa época, como foi o boom das drags, se ganhava muito dinheiro. Então, eu trabalhava em uma empresa, e eu saí dessa empresa porque eu ganhava mais fazendo eventos como drag do que trabalhando na empresa. Então eu me tornei uma drag por amor à profissão e porque eu adorava tudo aquilo. Eu vi aquilo ali como trabalho porque no momento que eu larguei uma profissão de vendas pra viver daquilo,  pra mim foi maravilhoso. E eu fiquei 12 anos vivendo trabalhando como drag queen sem assinar carteira.

Aquenda Revista: Você falou que não entendia muito bem o que era drag, trans e travesti.  Quando você entendeu essa diferença ?

Letícia: Eu entendi com o passar dos anos, né? Porque na minha época,  tudo era a mesma coisa,  não tinha essa classificação. Tudo era drag, trans pra mim, na minha cabeça era tudo a mesma coisa, e não é. Com o passar do tempo veio as ONGS, a mídia,  e aí foi ensinando o povo a entender  o que que era uma drag, trans e travesti. Na minha época não tinha nada disso. Muitas festas eu fiz e me olhavam com cara feia. Eu já sabia que eu era uma drag, que eu era um ator que se montava para fazer sua arte. Eu era um homem que se vestia de drag para animar, colorir, divertir a festa da pessoas. Eu quero levar alegria  para a vida das pessoas!!

 

Aquenda Revista: Drags ganhavam muito dinheiro um tempo atrás, ao contrário de muitas drags da nova geração. Porque a nova geração de drags não tem esse reconhecimento?

Letícia: Porque não tem mais casas, acabou tudo, só ficou algumas.. Antigamente se viajava para todo o interior do Rio Grande do Sul e algumas cidades do Brasil. Então o tempo foi passando, a nova geração veio, e a crise mundial, enfim…..a década mudou, né? O conceito mudou. A única casa que manteve os shows em Porto Alegre foi boate Vitraux. E essa nova classe artística, elas trabalham bastante.  Mas quanto a valorização do cachê, eu aí já não sei te dizer, porque eu sei que eu cobro um valor pelo meu trabalho, e eu não vou me desvalorizar.

 

Aquenda Revista: Você enxerga alguma diferença entre as drags de Porto Alegre antes do sucesso do reality “Ru Paul’s Drag Race” e pós sucesso do reality?

Letícia: É óbvio, com certeza que eu vejo muita diferença nas drags de hoje em dia com as drags de 20 anos atrás. Como eu te falei né? Não tínhamos programas de TV, não tínhamos internet, não tínhamos rede social, era na cara e na coragem. Hoje se tem a faca e o queijo na mão, tu pega e vai para o Youtube que tem tutoriais maravilhosos de como ser uma drag queen. E quanto as drags de hoje, cada uma se encaminha para seu lado profissional. Hoje temos uma série de drags, cada uma no seu estilo.  Hoje as pessoas aceitam mais, então tem muito mais liberdade de expressão do que 20 anos atrás. Hoje a gente tem drags maravilhosas. Quem começou essa função de Ru Paul foi a Sarah Vika que sempre falou muito bem de mim, ela é maravilhosa, temos também a Isis James – Preston, Kloe Saviñon, Rebeca Rebu, Jazzy Jones, enfim, se eu falar de todas, eu vou acabar me esquecendo. A nova geração veio com tudo. Elas são lindas, maravilhosas, meninos que tem tudo pela frente, é só saber o que quer. Mas muitas desistem no meio do caminho porque é uma profissão difícil e cara. Se você quer ser uma drag queen, tem que se dedicar a essa profissão.

Aquenda Revista: Já sofreu algum preconceito por ser Drag?

Letícia: Eu acho que o único preconceito é porque eu sou homem de 51 anos e que gosta de gay, né? Eu namoro gays mais jovens. Então eu acho que o próprio preconceito vem do povo LGBT.  Hoje é diferente, os meninos gays aceitam mais, mas eu ainda acho que tem preconceito com as drags, de namorar uma drag, porque é muito difícil tu namorar uma pessoa que faz show, uma pessoa que tá no auge da sua carreira, tá viajando. Chega final de semana, digamos hoje em dia, você trabalha durante a semana, e tu quer ficar com teu namorado e teu namorado quer ficar contigo, então é difícil tu conciliar  as duas coisas. E o preconceito que eu falo é a respeito disso, eu acho que o preconceito com drag em relacionamentos é muito cruel. As pessoas não acompanham, porque quando tu diz: ahh…porque eu sou a Letícia, eles ficam meio assim. Não querem ficar comigo por causa disso, eles tem receio. Outro tipo de preconceito tirando  relacionamentos foi há 20 anos que eu fui, eu sempre fui muito colorida, e uma cliente me chamou para fazer o evento e eu fiz, eram pessoas de classe alta, aquela coisa toda, e quando eu saí da festa, ela não queria que eu saísse pela frente do condomínio porque eu estava com uma roupa com as pernas de fora, era um figurino lindo, caríssimo. Se fosse nos dias de hoje, eu teria processado aquela cliente. Eu não estava nua, eu estava vestida, e isso eu  jamais vou me esquecer. Eu quero animar, eu sou paga pra animar.  E eu acho que essa é a obrigação e a missão da drag. E o gay e o hetero é 8 ou 80, ou ele te ama ou te odeia, é assim que eu aprendi. Eu posso estar a drag mais linda, maravilhosa, sempre vai ter alguém pra botar defeito. Então, se eu for me estressar com isso, eu não me monto. Eu me monto porque eu quero, porque eu gosto de ser a Letícia Dumont para agradar as pessoas e para ganhar meu dinheirinho.

 

Aquenda Revista: Nos teus 20 anos de carreira de drag, qual foi teu maior obstáculo?

Letícia: Meu maior obstáculo é que eu queria ser uma drag apresentadora, então aquilo ali para mim tinha que render, eu tinha que mostrar para as pessoas que além de ser uma drag queen que fazia show, eu tinha que estar impecável, que eu tinha que saber apresentar, que eu tinha o dom do microfone. Essa é a parte pior da drag queen, é você se comunicar com as pessoas. É muito fácil tu fazer um show, tu vai lá e arrasa, é muito fácil tu fazer uma Hostess, tu vai lá e fica na porta dando oi e boa noite. Agora, apresentar é muito difícil, são poucas que tem esse talento. Então para mim, esse foi meu maior obstáculo,  ser uma drag queen apresentadora.

Aquenda Revista: E qual foi o momento mais marcante que tu teve como Drag?

Letícia: Foi quando eu me tornei apresentadora de uma casa famosa de Porto Alegre chamada Cabaret Indiscretus, que eu fiquei na frente quase 5 anos, que foi muito maravilhoso. Quando eu entrei na casa, eu tive o prazer de conviver com muitas pessoas, com muitos gays que não eram assumidos, então pra mim foi muito emocionante as pessoas bater no camarim, falar comigo e pedir uma palavra de conforto porque esse é o papel da drag. A gente não faz só show, a gente faz tudo. A gente é psicóloga também, mas muita coisa eu escutei de gays novinhos que estavam se assumindo naquela época. Com uma nova geração de drags, como te falei na outra pergunta que tu me fez, a Isis James-Preston me via montada há 10, 12 anos e ela não era nem drag, e ela estava lá me aplaudindo, então isso pra mim é muito gratificante. Naquela época eu, Charlene Voluntaire, Suzzy B, Dandara Rangel, João Carlos Castanha, Gloria Crystal eramos as drags da época, era o que elas tinham como referência, nós eramos o espelho delas. Então isso pra mim é muito gratificante, escutar isso da boca delas dizendo: “nossa, eu curtia teus shows”, “Letícia, tu é diva, você é maravilhosa”, então isso tudo é significante para mim. Momento mais marcante em show foi quando eu participei do Top Drag no Vitraux, acho que foi em 2005, eu fiquei em terceiro lugar e naquele momento, meu namorado montou pra mim um show, ele me ajudava muito, e me disse pra eu fazer assim e assado, daí eu fui e fiz. Eu entrei de Nossa Senhora Aparecida, e quando chegava no meio da música, eu abria a capa e saia toda de verde e amarelo representando meu Brasil, isso foi um dos momentos mais marcantes da minha carreira e ficou na memória para quem assistiu o show na épca.

 

Aquenda Revista: Qual conselho você dá p quem quer ser Drag? Seja como hobby ou profissão?

Letícia: Em primeiro lugar, seja humilde, não seja uma drag close, uma drag carão. Eu nunca fui assim. Eu sempre fui a drag do povo, a drag que escutava, a drag humilde,  a drag que ponderava as coisas. Essa é a função da Letícia. E quanto a nova geração, se elas querem ser drag, em primeiro lugar elas tem que investir, comprar maquiagens, perucas, e tudo é  muito caro. Uma drag de nome demora um pouco, mas não desistam dos seus sonhos. Os sonhos  nada é impossível, tudo se torna realidade quando você quer. A gente começa feia e vai melhorando aos poucos, e com o tempo a gente vai aprendendo. Hoje em dia é muito mais fácil,  elas procuram nas redes sociais e  vão ser lindas e maravilhosas, mas para isso, tenha talento. Enfim, tem várias classes que a gente coloca a drag, que ela faça aquilo que ela quer. O que interessa é que você seja feliz, você esteja feliz consigo mesma.  Você pode ser a gay mais mal produzida da face da terra, mas você vai se arrumar, se  maquiar, se produzir e vai ficar linda, porque tudo que você transforma fica lindo.

 

Aquenda Revista: Você pode falar quais são seus planos pós pandemia?

Letícia: Após essa pandemia, eu quero fazer um show, o meu especial de 20 anos e espero que seja no Vitraux. Se eu conseguir fazer em outros lugares, em outras casas que eu já me apresentei, vou amar….eu vou tentar chamar algumas drags que já estão comigo nessa luta há 20 anos, e algumas da nova geração que quiserem participar no especial, é isso. E continuar fazendo meus eventos. Animando, né?

 

Foto: arquivo pessoal do André Ferreira 🙂

Agradecimentos: Meus agradecimentos especiais que eu não posso me esquecer jamais. De todas as pessoas que me apoiaram nesses 20 anos.  Cabaret Indiscretus que eu trabalhei quase 5 anos, ao Demétrio Pompeu que acreditou no meu talento, ao Vitraux Club que é uma casa que me abraçou sempre com muito carinho, ao Beto (proprietário do Vitraux Club), ao Alemão, a Suzzy B que sempre quando pode, me chama para fazer show. Aos meus fãs, amigos, família e todos aos donos e proprietários das boates que passei no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Um grande beijo a toda essa nova geração de artistas que está surgindo, as grandes artistas do Rio Grande do Sul como Castanha, a Suzzy, Fabielly, Charlene, Cassandra Calabouço, Laurita Leão, Gloria Crystal. Agradeço de coração a todas essas pessoas me deram oportunidade pra ser o que eu sou hoje. E agradecimentos mais  que especiais a Anastácia Drag, que por ela, eu estou  aqui com você dando essa entrevista.  Leleka (Aquenda Revista), te agradeço de coração, espero que um dia a gente se conheça pessoalmente. Quando eu fizer minha festa de 20 anos, quando tudo isso acabar, quando essa pandemia horrorosa acabar, e a gente vai se ver com certeza se Deus quiser. Um grande beijo da Lelê!!

 

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